segunda-feira, 28 de maio de 2012

Sobre índios, negros e escravos



A inspiração para essa postagem foi uma discussão na página Anti-ateísmo, noFacebook, sobre uma imagem que questiona a acusação de que aos olhos da Igreja negros não tinham alma. Gostaria de expor brevemente alguns pontos contra essa ideia e falar um pouco sobre a questão da escravidão.

A visão de que a Igreja tratava certos grupos de pessoas, ou raças, se preferirem, como desprovidos de alma é bastante comum. Foi repetida, por exemplo, por Yuri Grecco (Igreja Católica tem déficit de aprendizagem), em relação aos índios. A ideia é tão absurda, que a primeira pergunta que precisamos fazer é a seguinte: qual o propósito de se catequizar alguém que não possui alma? Talvez uma vaga esperança de batizar o nariz ou as unhas dos nativos, mas optarei por evitar especulações. Depois de ter dedicado duas postagens para responder alegações do sr. Yuri (Challenge Accepted;Brasil: terra dos palpiteiros #5), não me sinto culpado em dizer que esperar qualquer raciocínio maduro dele em relação à Igreja é como esperar que Dawkins aceite debater William Lane Craig.
De qualquer forma, penso que se considerarmos a história do cristianismo de maneira apropriada, a alegação de que a Igreja via índios e negros como pessoas que não possuíam alma pode ser facilmente refutada; e a questão da escravidão, longe de atrapalhar, ajuda. Pode não ser um fato conhecido entre pessoas como o sr. Yuri Grecco, mas a instituição da escravidão deixou de existir na Cristandade, ou seja, na Europa medieval. Há vários motivos para isso, e podemos argumentar tanto a partir de avanços tecnológicos da época, como a partir de ideias defendidas pela Igreja e estima que a civilização medieval tinha por tais ideias. Para os neo-ateus, no entanto, a palavra avanço jamais poderia aparecer relacionada à Idade Média, mas à essa altura já não há a necessidade de falar sobre o conhecimento neo-ateísta referente a esse período.

O sr. Roberto Carneiro, professor de História, argumenta que "o negro era considerado uma propriedade no tempo da escravidão", e continua: "Uma cama tem alma? Logo, o escravo era tido como propriedade, incluído até mesmo em testamentos, sendo assim, 'não possuía alma'". Por fim, conclui: "Ainda que a Igreja Católica não tenha pecado por ação, ainda que ela considerasse que os negros tinham alma, pecou por omissão, se abstendo de lutar contra os governos nacionais, seus sustentadores". Aqui temos, portanto, algumas questões básicas: o negro era considerado uma propriedade e não possuía alma. Se a firmação for verdadeira, então a Igreja errou por ação; mas se for falsa, então a Igreja errou por omissão.

O que podemos concluir é que, mais uma vez, seja lá o que tenha acontecido, a Igreja errou. Antes de comentar os três pontos, diria que é bastante revelador, mas não surpreendente, o fato de o sr. Roberto Carneiro, que não é um neo-ateu, atribuir à Idade Média o famigerado título de Idade das Trevas, e mais ainda a sua preferência por livros de autores não cristãos sobre esses temas (que o leitor pode conferir na discussão). De fato, eu não posso questionar a preferência das pessoas, mas temo que isso indique certo receio de que autores cristãos, ou católicos, mais especificamente, tendam a ignorar as evidências para melhorar a imagem do cristianismo. Não diria que isso não acontece, mas não poderia deixar de dizer que o inverso é igualmente verdadeiro: há autores não cristãos que tendem a ignorar as evidências para piorar a imagem do cristianismo. Um professor de história deveria saber que não é pelo autor que julgamos as informações como mais confiáveis, mas pelas informações em si - e, para ser justo, eu imagino que o sr. Roberto saiba disso. Qualquer comentário adicional que eu faria sobre esse ponto pode ser encontrada em minha já referenciada resposta a um dos vídeos do sr. Yuri.
A história do cristianismo primitivo e a história recente da humanidade são os dois períodos mais importantes para contestar as ideias de que a Igreja dizia que diferentes raças não possuíam alma. Em primeiro lugar, porque a concepção moderna de raça - de que a humanidade seja uma espécie que se divide em raças diferentes, no sentido biológico - escapa à maior parte da história humana: surgiu no século XVIII, e é, portanto, totalmente posterior à toda a Idade Média e também à escravidão decorrente da descoberta do Novo Mundo. Antes disso, identifica-se o etnocentrismo, uma ideia presente em todas as civilizações humanas, mas completamente diferente do racismo, especialmente por não relacionar-se à ideia de ancestralidade.

O grande problema, aqui, é que muitas pessoas acreditam que a escravidão dos últimos séculos ocorreu baseada na ideia de que os negros eram inferiores aos brancos, o que, portanto, daria aos brancos o direito de dominá-los e utilizá-los como bem entendessem. Mas essa ideia é falsa: a verdade é que a história da escravidão não possui essa justificativa biológica, e de fato os negros escravizavam os negros, e depois os vendiam aos brancos. No Mundo Antigo a escravidão também não era baseada em questões raciais e, obviamente, nem poderia. A ideia de superioridade racial é moderna, e é por isso que ao longo da história humana brancos e negros foram escravizados por outros brancos e negros - escravos eram prisioneiros de guerras, devedores que não podiam pagar suas dívidas, etc. -, sem que a questão dependesse de um conceito inventado para justificar políticas raciais contemporâneas.

É simplesmente inútil perguntar por que a história não nos é apresentada como realmente aconteceu quando as políticas raciais praticadas nesse exato momento no Brasil e em outros países da América e do mundo dependem fortemente dessa perversão. A ideia de que os brancos tem uma dívida histórica com os negros é uma arma política que ainda terá força quando as crianças de hoje estiverem se candidatando às futuras eleições. Para encerrar esse ponto e prosseguir com a postagem, adicionarei às referências alguns livros que contam a história da escravidão de povos por povos, em vez de contar uma história falsa que busca justificar uma agenda.

Quanto à história do cristianismo primitivo, é importante ter em mente que até o século VII, a África foi um dos centros do cristianismo. Quão importante fora Antióquia para a história da Igreja? O Egito é onde nasceu nada menos que o monasticismo cristão. Além da Síria e do Egito, é possível lembrar da Argélia e sua célebre cidade, Hipona. É simplesmente óbvio que a África foi crucial para o cristianismo primitivo, e seria extremamente absurdo supor que não havia negros ou que não havia negros cristãos nesses países durante os primeiros séculos. Eles estavam lá, e não eram poucos, e não são desconhecidos. Santos viveram nesses lugares, e a conclusão sensata sobre esses detalhes é que eles tornam a argumentação em favor dos negros sem alma insustentável. Não se sabe, por exemplo, se Santo Agostinho era negro, mas sabemos que sua mãe, Santa Mônica, era provavelmente berbere. Santa Felícia e Santa Perpétua foram mortas em Cartago, no início do século III.

Não acho necessário ser tão enfático sobre esse ponto: apesar de citar um artigo de Thomas Woods que comenta os centros cristãos africanos até a chegada do islamismo, e uma lista extensa de santos africanos, basta entender o que era a África no começo do cristianismo e durante seu crescimento, e todas as dúvidas sobre a questão extremamente imbecil das almas serão superadas. Soma-se a isso o fato de o racismo ser um fenômeno contemporâneo, e terminamos definitivamente.

Agora, então, gostaria de explorar o fim da escravidão na Cristandade, antes de chegar ao problema do Novo Mundo. Rodney Stark escreve: "Alguns historiadores negam que a escravatura tenha cessado na Idade Média. Afirmam que devido a um desvio linguístico, a palavra 'servo' tomou o lugar da palavra 'escravo'. Mas são os historiadores, e não a história, quem fez este jogo de palavras" (Rodney Stark, A Vitória da Razão, pág. 77). Régine Pernoud reforça o ponto (Luz sobre a Idade Média, págs. 39-40):
Depois vêm os servos. A palavra foi muitas vezes mal compreendida, porque se confundiu a servidão, própria da Idade Média, com a escravatura que foi a base das sociedades antigas e da qual não se encontra qualquer rasto na sociedade medieval. Como refere Loisel: «Todas as pessoas são francas neste reino, e logo que um escravo atinge os degraus do conhecimento (ice lui) fazendo-se baptizar, é franqueado». Tendo a Idade Média por força das circunstâncias ido buscar o seu vocabulário à língua latina seria tentador concluir da semelhança dos termos a semelhança de sentido. Ora, a condição do servo é totalmente diferente da do escravo antigo: o escravo é uma coisa, não uma pessoa; está sob a dependência absoluta do seu dono que possui sobre ele direito de vida e de morte; qualquer actividade pessoal é-lhe recusada; não conhece nem família; nem casamento, nem propriedade.

O servo, pelo contrário, é uma pessoa, não uma coisa, e tratam-no como tal. Possui uma família, uma casa, um campo e fica desobrigado em relação ao seu senhor logo que pague os censos. Não está submetido a um patrão, está ligado a um domínio: não é uma servidão pessoal, mas uma servidão real. A restrição imposta à sua liberdade é que não pode abandonar a terra que cultiva. Mas, notemo-lo, essa restrição não deixa de ter uma vantagem, já que, embora não possa deixar a propriedade, também não podem tirar-lha; esta particularidade não estava longe, na Idade Média, de ser considerada um privilégio, e, de facto, o termo encontra-se numa recolha de costumes, oBrakton, que diz expressamente falando dos servos: «tali gaudent privilegio, quod a gleba amoveri non poterunt [...] gozam desse privilégio de não poderem ser arrancados à sua terra» (mais ou menos aquilo que seria nos nossos dias uma garantia contra o desemprego).
Stark levanta o problema do envolvimento cristão com o fim da escravidão na Idade Média (A Vitória da Razão, págs. 77-8):
A instituição primitiva da escravatura desapareceu da Europa, antes do fim do séc. X. Quase todos os historiadores contemporâneos concordam com esta conclusão, se bem que ainda está na moda afirmar que o Cristianismo nada teve a ver com o desaparecimento da escravatura. [...] Estes autores acreditam que escravatura desapareceu porque era um método de produção ultrapassado e pouco lucrativo. [...] Alguns concluem que o fim da escravatura não foi uma decisão moral mas sim uma decisão de interesses pessoais por parte da elite. O mesmo argumento foi aplicado à escravatura no Ocidente. Este argumento simplista é consistente com a doutrina marxista, mas não é nada consistente com a realidade económica. Em época tão recente quanto a Guerra Civil americana, a escravatura ainda era um meio de produção lucrativo no sul.

Mas basta de tergiversações! A escravatura acabou na Europa medievalapenas porque a Igreja alargou a prática dos sacramentos a escravos e, em seguida, proibiu a escravatura de cristãos (e judeus). No contexto da Europa medieval, essa proibição foi como uma lei de abolição universal. [...] A ideia que Deus nos trata a todos de forma idêntica é central para a mensagem cristã: todos podem ser salvos. É por isso que a Igreja, desde seus primórdios, tentou converter os escravos e, sempre que possível, comprar a sua liberdade. O papa Calisto (que morreu em 236) foi, ele próprio, um escravo.
"A Igreja não se ergueu contra a instituição propriamente dita de escravatura, necessidade económica das civilizações antigas. Mas lutou para que o escravo, tratado até então como uma coisa, fosse daí em diante considerado como um homem e possuísse os direitos próprios da dignidade humana; uma vez obtido este resultado, a escravatura encontrava-se praticamente abolida" (Régine Pernoud, Luz sobre a Idade Média, pág. 87). Tal citação me fez lembrar uma marcante passagem em que Chesterton comenta a questão: "Cristo, tanto quanto Aristóteles, viveu num mundo que aceitava a escravidão, e ele não a denunciou de forma específica. Iniciou um movimento que poderia existir num mundo com escravos. Mas era um movimento que poderia existir num mundo sem escravos" (G. K. Chesterton, O Homem Eterno, pág. 206). Sinto como se qualquer adição que eu fizesse fosse estragar a beleza com que a ideia foi expressa.

Ainda é interessante notar que "a conclusão teológica que a escravatura é um pecado pertence ao Cristianismo" (Rodney Stark, A Vitória da Razão, pág. 80). Para o islã, as coisas eram mais difíceis (A Vitória da Razão, pág. 81):
No caso do Islão, existe uma barreira insuperável às condenações teológicas da escravatura: Maomé comprou, vendeu, capturou e possuiu escravos. [...] Maomé também libertou vários escravos, adoptou um como filho, e casou-se com uma escrava. [...] As palavras e exemplo prático de Maomé melhoraram provavelmente a vida dos escravos em países muçulmanos, relativamente a Grécia e Roma. Mas o Islão nunca pôs em causa a moralidade fundamental da instituição da escravatura.
Ademais, cabe uma observação oportuna de Pernoud: "É curioso constatar que o facto paradoxal da reaparição da escravatura no século XVI, em plena civilização cristã, coincide com o retorno geral ao direito romano nos costumes" (Régine Pernoud, Luz sobre a Idade Média, pág. 87). E, tendo agora tocado justamente na reaparição da escravidão, chegamos ao último problema que tratarei nessa postagem. Aqui o problema parece ser insuperável, afinal, nas palavras de Daniel Sottomaior, "a escravidão é plenamente legitimada por diversas bulas papais"

(http://www.conjur.com.br/2012-mar-21/escravidao-foi-tradicional-crucifixos-reparticoes-publicas). É ao menos necessário perguntar se o sr. Daniel cita essas "diversas bulas papais"? Bom, ele nos dá um exemplo: a bula Dum Diversas - segundo ele, do Papa Paulo VI. E o que realmente precisamos perguntar é: qual será a fonte de informações do nobre presidente da ATEA? Nem mesmo o Google apontaria algo tão descabido. Aliás, o parágrafo utilizado por Daniel é o mesmo que se encontra em praticamente todas as fontes na internet, que não têm a decência de apresentar o documento completo, que é do Papa Nicolau V. E como poderiam? Ele não foi traduzido integralmente para o português, e é geralmente o único exemplo oferecido em favor do argumento de que "a escravidão é plenamente legitimada por diversas bulas papais".

Vejam que interessante: o sr. Daniel quer convencer o leitor de que uma única bula, que ele sequer sabe de quem é, serve para justificar a idéia de que há várias outras de conteúdo semelhante; e o faz através do que chamamos quote mining - tática que consiste em escolher uma passagem conveniente para justificar o que está sendo afirmado. É o que acontece quando se cita uma famosa passagem de A Origem das Espécies para dizer que Darwin era racista - algo que também é bastante comum e naturalmente irrita o bom senso. De qualquer forma, Dum Diversas não é uma bula, mas um breve - que é um documento de valor inferior - de 1452, como explica Daniel-Rops. O breve foi anulado em 1453, e substituído por outro chamado Romanus Pontifex. O fato óbvio, por mais terrível que pareça o parágrafo citado, é que seu conteúdo não representava uma regra, muito menos algo fundamental - e menos ainda tradicional - para a Igreja; e, definitivamente, não é por um parágrafo que se analisa o episódio de forma apropriada. Rops escreve (A Igreja da Renascença e da Reforma II, pág. 276):
Já no ano seguinte, em 1453, o mesmo papa, pelo breve Romanus Pontifex, verificando que muitos desses infiéis se tinham convertido ao catolicismo, precisava que não se podia manter em escravidão os batizados; e Calixto III e depois Sixto IV chegarão mesmo a excomungar os que os reduzissem à escravidão... Por fim, em 1537, Paulo III confiava ao arcebispo de Toledo e Patriarca das Índias a missão de proteger os indígenas americanos, tanto cristãos como pagãos, e na bula Sublimis Deus excomungava quem quer os escravizasse ou se apossasse dos seus bens:
"Nós, [...] não obstante o que se tenha dito ou se possa dizer em contrário, [definimos e declaramos que] os tais índios e todos os que mais tarde sejam descobertos pelos cristãos, não podem ser privados de sua liberdade por nenhum meio, nem das suas propriedades, mesmo que não estejam na fé de Jesus Cristo; e poderão livre e legitimamente gozar da sua liberdade e das suas propriedades, e não serão escravos, e tudo quanto se fizer em contrário, será nulo e de nenhum efeito.
Agora, como isso obviamente não seria suficiente para calar ou convencer o adversário, gostaria de voltar um pouco no tempo, para 1435, quando o Papa Eugênio IV emitiu a bula Sicut Dudum, em que diz:
Eles privaram os nativos de suas propriedades e as tomaram para si, e submeteram alguns dos habitantes das ilhas mencionadas à escravidão perpétua (subdiderunt perpetuae servituti), venderam-nas a outras pessoas e cometeram vários outros atos malévolos e ilícitos contra eles. [...] Essas pessoas devem ser libertadas totalmente e para sempre, feitas livres para partir sem que se cobre ou receba delas qualquer dinheiro.
Lendo a bula, é possível notar que o Papa deu o prazo de cinquenta dias para que os conquistadores das Ilhas Canárias se retratassem de seus atos "malévolos e ilícitos". Mais notável ainda é o fato de que essa bula foi emitida quase sessenta anos antes da descoberta do Novo Mundo, e já aí há uma condenação formal da escravidão praticada pelos portugueses. E, também nesse caso, a pena para quem não restituísse à liberdade os que foram feitos escravos era a excomunhão ipso facto.

Quando à já citada Sublimis Deus, mesmo Gustavo Gutierrez, adepto à teologia da libertação, nota que trata-se do "pronunciamento papal mais importante em relação à condição humana dos Índios (Gustavo Gutierrez, Las Casas: in search of the poor Jesus Christ, pág. 302). "Quando Ele destinou os pregadores da fé ao ofício da pregação, é sabido que disse: 'Ide, fazei discípulos de todas as nações'. 'Todas', Ele disse, sem exceções, já que todos são capazes da disciplina da fé", escrevera Paulo III. Os ensinos de Eugênio IV e Paulo III foram continuados por Gregório XIV, em 1591 (Cum Sicuti) e por Urbano VIII, em 1639 (Commissum Nobis). Também com Bento XIV, em 1741 (Inmensa Pastorum) e Gregório XVI, em 1839 (In Supremo Apostolatus), que escreveu:
Certamente muitos Pontífices Romanos de memória gloriosa, Nossos Antecessores, não falharam, de acordo com as obrigações de seus ofícios, em condenar severamente esse modo de agir como perigoso para o bem-estar espiritual daqueles que fizeram tais coisas e uma vergonha para o nome cristão. [...] As penalidades impostas e o cuidado tomado por Nossos Antecessores contribuíram não de forma pequena, com a ajuda de Deus, a proteger os índios e os outros povos mencionados da crueldade dos invasores ou da ganância de mercadores cristãos, sem, no entanto, obterem sucesso a tal ponto que a Santa Sé pudesse se alegrar de seus esforços nessa direção. [...] O comércio de escravos, ainda que de alguma forma diminuído, ainda é praticado por muitos cristãos, portanto, com o desejo de remover tal vergonha de todos os povos cristãos [...] e seguindo os passos de Nossos Antecessores, Nós, com autoridade apostólica advertimos e exortamos os cristãos de fé no Senhor, de todas as condições, que ninguém no futuro se atreva a incomodar com injustiça, despojar suas propriedades ou reduzir à escravidão (in servitutem redigere) Índios, Negros ou outros povos.
Esperemos, agora, que o sr. Daniel Sottomaior nos traga as diversas bulas papais que legitimam plenamente a escravidão. É uma chance que precisa ser dada ao presidente da ATEA antes que possamos acusá-lo de ignorância ou desonestidade. Ademais, cabe lembrar que a voz da Igreja não se limita aos papas, e, como observa Thomas E. Woods (Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, pág. 128):
Nenhum dado histórico permite supor que Átila, o rei dos hunos, tenha tido qualquer escrúpulo moral nas suas conquistas, nem que os sacrifícios humanos coletivos que os astecas promoviam e que consideram tão fundamentais para a sobrevivência da sua civilização, tenham provocado entre eles sentimentos de autocrítica ou reflexões filosóficas que se pudessem comparar àquelas que os erros de comportamento dos europeus provocaram entre os teólogos da Espanha do século XVI.

Foi por essa reflexão filosófica que os teólogos espanhóis atingiram algo muito substancial: o nascimento do direito internacional moderno. As controvérsias em torno dos nativos da América forneceram-lhes uma oportunidade para elucidar os princípios gerais que os Estados estão moralmente obrigados a observar nas suas relações mútuas. 

Entre esses pensadores estava o pe. Francisco de Vitória (1492-1546), chamado "o pai do direito internacional" (Michael Novak, The Universal Hunger for Liberty, pág. 24), e aquele que "propôs pela primeira vez o direito internacional em termos modernos" (Marcelo Sánchez-Sorondo, "Vitoria: the original philosopher of rights", em Kevin White,Hispanic Philosophy in the Age of Discovery, pág. 66). Carl Watner, "All Mankind Is One", pág. 294); "proporcionou ao mundo da sua época a primeira obra-prima do direito das nações, tanto em tempo de paz como de guerra" (James Brown Scott,The Spanish Origin of International Law, pág. 65).

Woods explica que "Vitória procurou em São Tomás de Aquino dois princípios importantes: 1) a lei divina, que procede da graça, não anula a lei humana natural, que procede da natureza racional; 2) nada do que pertence ao homem por natureza pode ser-lhe tirado ou concedido em função dos seus pecados". E conclui: "Foi isso que Vitória quis dizer: o tratamento a que todo e qualquer ser humano tem direito - por exemplo, de não ser assassinado, expropriado dos seus bens, etc. - deriva da sua condição de homem, não de que seja um fiel em estado de graça" (Thomas E. Woods, Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, págs. 132-33). Contra aqueles que alegavam que os nativos fossem privados da razão, Vitória respondeu (Idem, pág. 136):
Na verdade, não são irracionais, mas possuem o uso da razão a seu modo. Isto é evidente, porque organizam as suas ocupações, têm cidades ordenadas, celebram casamentos, têm magistrados, governantes, leis [...]. Também não se enganam em coisas que são evidentes para os outros, o que revela que usam da razão. Nem Deus nem a natureza falham em dotar as espécies daquilo que lhes é necessário. Ora, a razão é uma qualidade específica do homem, e uma potência que não se atualizasse seria vã.
Bartolomé de Las Casas (1474-1566) posicionou de modo semelhante, e é o crítico da política espanhola mais conhecido, tendo influenciado pessoas de seu tempo e dos séculos seguintes (Mario Vargas Llosa, em Robert C. Royal, Columbus On Trial, págs. 23-4):
O padre Las Casas foi o mais ativo, ainda que não o único, dos não conformistas que se rebelaram contra os abusos infligidos aos índios. Esses homens lutaram contra os seus compatriotas e contra as políticas dos seus próprios países em nome de princípios morais que, para eles, estavam acima dos princípios de nação ou Estado. Essa autodeterminação não teria sido possível entre os incas ou em qualquer outra cultura pré-hispânica. Nessas culturas, assim como em outras grandes civilizações da História nascidas fora do Ocidente, o indivíduo não podia questionar moralmente o organismo social de que fazia parte, porque existia unicamente como um átomo dentro desse organismo e porque, para ele, os ditames do Estado não se dissociavam da moralidade.
Nada disso pretende negar as atrocidades cometidas após a descoberta do Novo Mundo, mas quando um nobre professor de História acusa a Igreja de ser um motor dessas tragédias ou, na melhor das hipóteses, ter sido omissa, é difícil não pensar sobre o real valor de um diploma - mas temo que dizer isso seja um tanto injusto. Pior, mesmo, é o presidente de uma associação que pretende ser defensora da razão escrever um artigo tão indecente que chega a ser esmagadoramente ofensivo ao mero senso comum. Enfim, gostaria de recomendar, para melhor compreensão da polêmica e o papel da Igreja na resolução, todo o capítulo VII do livro de Woods, "As origens do direito internacional" e, também, o capítulo X, "A Igreja e o direito Ocidental", que evitarei comentar para não deixar postagem ainda maior e mais cansativa.

Concluo dizendo que, se as pessoas pensam que a história humana foi ruim com a presença da Igreja Católica, o meu desejo sincero é que essas pessoas pudessem viver a mesma história, mas com a Igreja ausente. Provavelmente os europeus teriam conquistado, da mesma forma, o Novo Mundo, mas é difícil imaginar quem poderia impedir o Novo Mundo de ter se consolidado como o Novo Inferno. Talvez os estádios de futebol, que estão presentes no mundo inteiro, fossem arenas de gladiadores em que se celebrasse  o derramamento de sangue humano no mundo inteiro. No entanto, talvez esses exemplos ainda sejam sutis. Mas se as pessoas pensarem nessas hipóteses como impossibilidades históricas, então elas realmente não têm a menor ideia do mundo que existiu antes que o menino de Nazaré nascesse em Belém.


Referências e recomendações:
  1. Santa Mônica
  2. Santas Perpétua e Felicidade
  3. Lista de santos africanos
  4. The Mismeasure of Man
  5. White Slaves, African Masters
  6. The White Slave
  7. White Cargo
  8. Christian Slaves, Muslim Masters
  9. They were white and they were slaves (PDF)
  10. The truth about the crusades
  11. The Victory of Reason
  12. Luz sobre a Idade Média
  13. Dum Diversas: full text
  14. Sicut Dudum
  15. A Igreja da Renascença e da Reforma (II)
  16. Sublimis Deus
  17. In Supremo Apostolatus
  18. The Popes and Slavery: book
  19. The Popes and Slavery: free chapter
  20. Slavery and the Catholic Church
  21. The Popes and Slavery: article
  22. Let my people go
  23. The Universal Hunger for Liberty
  24. Hispanic Philosophy in the Age of Discovery
  25. All Mankind Is One
  26. The Spanish Origin of International Law
  27. Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental
  28. O Homem Eterno
Notas:
  1. A Vitória da Razão, edição portuguesa, Lisboa: Tribuna da História - Edição de Livros e Revistas, Lda. 
  2. Luz sobre a Idade Média, edição portuguesa, Lisboa: Publicações Europa-América, s/d.


1 - Em 13 de Janeiro de 1435, através da bula Sicut Dudum, o papa Eugénio IV mandou RESTITUIR À LIBERDADE os cativos das ilhas Canárias.

2- Em 7 de setembro de 1462, o papa Pio II (1458-1464) deu instruções aos bispos contra os tratamentos dos negros proveniente da Etiópia condenando o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime)

3- Em 1537, o papa Paulo III (1534-1549), através da bula Sublimus Dei (23 de Maio) e da encíclica Veritas ipsa (9 de Junho), lembrava aos cristãos que os índios “das partes ocidentais, e os do meio-dia, e DEMAIS GENTES”, eram SERES LIVRES POR NATUREZA.

4- Em 1571 Tomás de Mercado, TEÓLOGO DE SEVILHA, declarava DESUMANA E ILÍCITA A TRAFICÂNCIA DE ESCRAVOS. Em sua Summa de TRATOS Y CONTRATOS, este autor afirmava não haver justificativa para negócio tão infame.

5- O papa Gregório XIV (1590-1591) publicou a CUM SICUTI (1591) condenando a escravidão.

6- O papa Urbano VIII (1623-1644), também se pronunciou contra a escravidão na COMMISSUM NOBIS (1639).

7- O papa Bento XIV (1740-1758) na Bula IMMENSA PASTORUM escreveu: “...recebemos certas notícias não sem gravíssima tristeza de nosso ânimo paterno, depois de tantos conselhos dados pelos mesmos Romanos Pontífices, nossos Predecessores, depois de Constituições publicadas prescrevendo que aos infiéis do melhor -modo possível dever-se-ia prestar trabalho, auxílio, amparo, não descarregar injúrias, não flagelos, não ligames, NÃO ESCRAVIDÃO, não morte violenta, sob gravíssimas penas e censuras
eclesiásticas...”

8- O papa Gregório XVI (1831-1846) ao publicar a bula IN SUPREMO (1839) condenou a escravidão da seguinte forma: “Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam...”

9- Em 1888, o Papa Leão XIII, na encíclica IN PLURIMIS, dirigida aos bispos do Brasil, pediu-lhes apoio ao Imperador (Dom Pedro II) e a sua filha (Princesa Isabel), na luta que estavam a travar pela abolição definitiva da escravidão.


Detalhe: Houve três papas africanos que vieram de uma região do norte da África, onde os povos eram predominantemente negros. Embora não haja nenhum retrato autêntico destes papas, há desenhos e referências na Enciclopédia Católica a respeito de serem africanos. Os nomes dos três papas africanos são Vencedor ou Victor, Gelasius , e Melquiades ou Miltiades.

Para citar:

VIANA, Marina. Documentos Oficiais da Igreja contra a escravidão. Disponível em: <http://www.apologistascatolicos.com/index.php/magisterio/documentos-eclesiasticos/decretos-e-bulas/506-documentos-oficiais-da-igreja-contra-a-escravidao >. Desde 27/03/2012

CATEGORIA: DECRETOS & BULAS

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